O cântico do Leviatã - Marie no Kanaderu Ongaku


Olá, meus caros. Hoje, trago-lhes mais uma recomendação peculiar que mexeu intimamente comigo: Marie no Kanaderu Ongaku ou, em sua tradução literal, The Music of Marie (A Música de Marie). Uma obra ímpar que, inicialmente, não traz grandes expectativas, chamando atenção somente por seus cenários exorbitantes. Porém, no decorrer da trama, é explorado profundamente os personagens entrelaçados a um enredo contagiante e singular, tendo direito a diversas críticas sociais e mensagens ocultas.


Sinopse.

Em um mundo tecnológico e modernizado, até mesmo em sua geografia e ecossistema, os homens são observados por uma deusa mecânica chamada Marie, que pode ser vista vagando nos céus. A história se passa em Pirit, onde Kai, junto a Pipi, moram e aprendem mais sobre curiosidades. O protagonista nutre um amor incondicional pela divindade envolvido a um profundo carinho incompreensível pela maioria que só a idolatra. A busca do garoto por conhecimento e iluminação a respeito de seu universo, leva-o a conhecer internamente Marie, na qual nenhuma pessoa chegou compreendê-la.


Kai.


Um rapaz órfão que foi adotado pelos pais de Pipi quando pequeno, porém, começou a trabalhar desde cedo para não viver de favores, somente residindo em um cômodo disponível da casa dos senhores. Tranquilo e sensato, Kai é reconhecido na região de Pirit pela sua audição sobre-humana, considerada até um dom divino por alguns, conseguindo achar minérios através dos sutis sons da corrente de água. Costuma agir pelos instintos e cobrar-se bastante quando age contra o que acredita, principalmente em relação a Marie. Sua relação com a deusa é íntima, chegando a mesclar adoração com um desejo descomunal, o que causa grande ciúme por parte da “irmã adotiva”.


Pipi.


Uma jovem, perto dos seus dezoito anos, animada, otimista e teimosa. Vive ajudando o pai, com o auxílio de Kai, nas artimanhas tecnológicas, no qual o senhor é famoso pelos trabalhos bem elaborados, no entanto, não revolucionários. Pipi é sentimental, amigável e romântica, sempre procurando oportunidades para achegar-se a Kai. O garoto mostra indiferença nesse quesito, sendo o motivo da frustração da menina, mesmo que ela possua uma força de vontade inigualável para conquistar o amado. A personagem não costuma tomar decisões extraordinárias ou ser colocada sob pressão, porém, toda a obra mostra traços de sua personalidade única, em especial, no final do mangá.


Traços/Cenários.


Traços simples e detalhados, Marie no Kanaderu Ongaku tem um elenco diversificado com características modestas, sendo as próprias feições dos personagens não passando expressões impactantes, infelizmente, mas funcionando bem na fluidez do contexto. Porém, o ponto que mais chama atenção em sua primeira impressão é seus cenários. Todo o ambiente do mangá é amplo e constituído por diversas ilhas, cada uma tendo um objeto específico em torno da utopia deste universo. As paisagens tecnológicas são desenhadas de formas imaginativas, bem-feitas e criativas, beirando a perfeição. Suas artes coloridas são suáveis e com tonalidades pastéis, similares ao estilo vintage, trazendo um ar mais carinhoso e confortável à leitura.


Gêneros.


Seu drama é dividido de forma desuniforme entre os capítulos, envolvendo o legente com seus desenvolvimentos emocionantes. O autor centraliza os dois personagens, mantendo as suas caracterizações, simpatizando-os lentamente com suas ações para aproximar e sintonizar o leitor. A fantasia é nitidamente presente em toda o roteiro, obviamente, por tratar-se de um conto fictício e surrealista, contém atributos fabulosos, como a própria deusa e o mundo mecânico, colocando, assim, um aspecto único e encantador à obra. O romance não é muito explorado, no geral, porém, tem grande valor sentimental para a trama com o decorrer e fechamento dos arcos.


Individualidade.


A base dessa história se mantém em torno da mitologia empregada nesse planeta, com definições e designs próprios, até as tradições, vestimentas, costumes e sistemas excêntricos. Em destaque, temos a religião apresentada, no qual Marie é dominante, flutuando no céu, como um gigantesco anjo humanoide. Sua relação com Kai é intrigante, indo além das idolatrias habituais, alcançando sensações carnais e desaprovadas. Toda a idealização do mangá, com povos inventores e criativos florescendo sem nenhum resquício de pecado, trocando seus produtos fabricados especificamente com a região, visando somente no bem maior, é lindíssima. Não há conflitos, porém, existe uma tensão sútil que algo não está encaixando-se certamente no enredo, deixando uma névoa sugestiva e viciante para o público. No geral, é digno de palmas a criação de Usamaru Furuya, que faz uso de modelos simplistas e, hipoteticamente, ao Mito da Caverna de Platão, dizendo que temos um ângulo distorcido do factual, enclausurados nas influências, tudo para investir em suas peculiaridades. 


Também conhecido como “Alegoria da Caverna”, é uma parte do livro “A República” do filósofo Platão, considerada uma das mais importantes da história da filosofia. Contra sobre prisioneiros que, desde o nascimento, vivem em uma caverna, somente tendo visão das imagens projetadas na parede através da luz de uma fogueira. Aparecem sombras de estátuas, pessoas, animais e objetos, porém, os presidiários não têm noção da realidade dos formatos observados, meramente analisam e julgam as situações. Certo dia, um homem consegue escapar da caverna para explorar o exterior, assim, percebendo que toda a sua vida foi uma ilusão constituída de hipóteses. Encantado com toda a verdade, o tal volta para contar aos seus companheiros presos, porém, todos o ridicularizam e até mesmo criam ameaças para fazê-lo parar com as ideias absurdas.


Teocentrismo.


Marie soa uma música que traz harmonia e felicidade à humanidade, acalmando os corações tempestuosos somente por sua presença. Ela é considerada o centro do universo do mangá, idolatrada em inúmeros lugares de diferentes formas. Há repressão em relação aos pensamentos científicos ou com necessidade de evolução tecnológica, os quais são boicotados pela própria deusa, mantendo a mentalidade da população nos fatores sociais, políticos e econômicos, todos com extrema perfeição. A religião desse mundo mantém uma relação de confiança e bem-estar com os cidadãos, até no âmbito cultural, sem nenhum questionamento ou crítica sobre os dogmas seguidos. Todos esses pontos se assemelham ao Teocentrismo, uma filosofia que considera a divindade como o fundamento da ordem, mantenedora das boas ações para o ambiente e mantendo os princípios corretos. A doutrina teve forte repercussão na Idade Média, porém, vejo a simultaneidade com a obra no sentido mais puro e idealista possível com a humanidade.


Humanismo.


Antes de Marie, o mundo não possuía esta sapiência e imensa engenharia, como foi lhes apresentado, mas sim uma civilização mergulhada em guerras por poder e riquezas, sem valor pela vida. Política, gênero, etnia, poder e realização individual são motivos para conflitos e destruição alheia. Porém, em Marie no Kanaderu Ongaku, a deusa é a salvação, mantendo-se presente para prevenir desejos egocêntricos e a evolução da ciência a níveis alarmantes. A cada cinquenta anos, o planeta passa por uma confirmação de credulidade, para permanecer ou não em sua utopia com a música sagrada de Marie, valendo a liberdade para avançar com a sociedade, mesmo que isso seja esvair-se de todos os benefícios oferecidos. Essa situação implementada pelo mangá recorda princípios do Humanismo, o qual abriga concepções em torno do racionalismo, atribuindo somente ao pensamento lógico, cientificismo, afirmando a superioridade da ciência sobre todas as outras compreensões na realidade, e valorização do ser humano. A escolha centenária para o caminho da humanidade, caso decida quebrar o laço com a divindade, realça que, o incentivo para libertinagem de direitos e o falso altruísmo propagado, brota a raiz de egoísmo existente na população, sendo refletido em sintomas de corrupção para o povo. Sem Marie, os fatores externos e internos influenciam no modo em que os humanos se comportam ou se posicionam aos dilemas existenciais, dependendo, exclusivamente, do estado emocional e da ideologia constituída com base em suposições.


Opinião.


Um mangá que me pegou totalmente desprevenida com a sua arte excepcional, que deixou um grande marco, já que o próprio artista, conhecido por seus outros trabalhos singulares, trabalhou como professor de artes, justificando a criação de seus cenários magníficos, com uma mescla abstrata de esculturas originais que são passadas para surpreender o leitor. A suave flexibilidade das construções tecnológicas dessa sociedade fictícia rodeada de engrenagens, traz ótimas metáforas de uma existência ideal. Mesmo o ambiente sendo um ponto forte, o roteiro não fica para trás, apresentando uma narrativa lenta inicialmente, mas abordando questões morais em pequenos diálogos, no avançar dos capítulos, além de cenas chocantes no final que o autor fez questão de utilizar para impactar o público. Na metade da obra, o clima torna-se mais frenético e envolvente, carregado de teorias inquietantes que perturbam o legente com a quantidade incalculável de mistérios. Vale ressaltar que, no arco final, há um espetacular desenvolvimento psicológico dos personagens, recheados de reviravoltas torturantes e provocadoras. No geral, uma verdadeira obra-prima que vale a pena conhecer.


Finalização.


Essa foi a minha amável recomendação que compartilho convosco, uma leitura que, independentemente de qual gênero vocês gostem, há altas possibilidades de se encantarem com Marie e suas melodias surrealistas. Para encerrar, como disse em meu outro blogue, as doutrinas citadas foram somente para complementar a análise no âmbito filosófico do mangá. Não há necessidade de conflitos ideológicos, com exceção dos argumentos opositores que se referem inteiramente na concepção metafísica da obra. Sugestão da autora: leiam ouvindo a banda The Smashing Pumpkins (especificamente, os álbuns Siamese Dream ou Mellon Collie and the Infinite Sadness) para terem uma experiência mais psicodélica e imersiva.


Informações.


  • Volumes: 2;
  • Capítulos: 17;
  • Status: completo;
  • Publicação: 10/12/1999—12/09/2001;
  • Demografia: seinen;
  • Autor: Usamaru Furuya;
  • Artista: Usamaru Furuya;
  • Serialização: Comic Birz.

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